Bebê “Reborn” – O Simbolismo por trás do sintoma

Devemos começar a olhar para a polêmica em torno das bonecas “Reborn” questionando o motivo deste fenômeno ter ganhado a mente do imaginário das pessoas, ou seja, ter virado “moda”.

Ao buscar dados concretos, percebemos que não há estatísticas robustas sobre a adoção dessas bonecas — ou seja, não se trata de um movimento de massa estatisticamente falando, mas de um fenômeno amplificado pelos algoritmos, refém da lógica do consumo e da espetacularização. Enquanto discutimos bonecas que simulam vida, outras questões sociais urgentes ficam em segundo plano, desfocadas.

Esse fenômeno não é novo. A criação de realidades fantasiosas — onde objetos inanimados ganham status de “vida” — repete um padrão antigo: já foram os Tamagotchis nos anos 1990, os homens que se “casavam” com robôs sexuais ou, mais recentemente, os relacionamentos com IA companions. A diferença é que, hoje, o objeto de projeção são bonecas hiper-realistas.

Com isso, o olhar que quero trazer aqui é para o sofrimento por trás desse símbolo e os reais questionamentos sociais e relacionais que precisamos nos fazer para entender as dinâmicas e realidade que estamos vivenciando tanto como seres individuais como coletivos.


1. Desmistificando o que é uma psicose

Psicose é um estado mental em que a pessoa perde o contato com a realidade compartilhada, acreditando concretamente em uma realidade singular fantasiada. Não se trata simplesmente de “imaginar” — é uma ruptura que pode envolver delírios (como acreditar que uma boneca está viva, que é Deus, um super-herói, etc) ou alucinações e distorções sensoriais (ouvir vozes, falar com objetos inanimados).

Por que isso importa?

De nada adianta olharmos para esse fenômeno de forma massificada. O sofrimento e a vivência dele é individual. Precisamos avaliar o sofrimento em sua forma singular. Por tanto o que tento fazer aqui é buscar compreender as questões coletivas que podem unir tais singularidades, mas sem a intenção de esgotar o entendimento do sintoma em questão.


2. Por Que Agora? A Intensificação do Apego

Essas bonecas existem há mais de 20 anos, mas o que mudou para que se tornassem um sintoma social?

  • Crise de conexão humana: Vivemos uma época de relações líquidas (Bauman), onde vínculos reais são frágeis, e objetos controláveis ganham espaço.
  • Redes sociais: A viralização de unboxings e “vidas de mães de Reborn” cria comunidades de validação, onde o simulacro é celebrado como real.
  • Sociedade pós-pandemia: Isolamento acelerou a busca por substitutos afetivos – não só bonecas, mas também o advento das I.A.s e pets humanizados.

3. O Nome “Reborn”: Entre a Arte e a Fantasia

O termo reborn (“renascido”) não é aleatório:

  • Artisticamente: Refere-se ao processo minucioso de transformar uma boneca comum em uma obra hiper-realista.
  • Emocionalmente: Simboliza um reencontro com papéis perdidos ou ausência destes (maternidade, cuidado) ou desejos não realizados (como ter um filho).

4. Do Hobbie ao Afeto: A Humanização das Bonecas

Inicialmente, eram apenas objetos de colecionador, mas hoje vemos:

  • Rituais de “nascimento”: Certidões, consultas pediátricas fictícias, festas de aniversário.
  • Consumo afetivo: Roupas de marca, berços caros – um mercado que movimenta dinheiro.
  • Resgate e construção de papéis: Mulheres em ninho vazio ou que não puderam ser mães encontram nelas uma identidade social (“mãe de Reborn”).

→ Isso revela uma cobrança cultural: a maternidade ainda é vista como definição máxima do feminino? Que valor tenho eu na sociedade se não exerço a maternagem? Seja com filhos, família ou até na profissão? O que é ser mulher na nossa sociedade? – tema extenso para um outro momento.


5. Recurso Simbólico ou Delírio em Rede?

O Lado Saudável: Objeto Transicional (Winnicott)

  • Na terapia, bonecas podem ser ferramentas de ressignificação, especialmente para:
    • Crianças (que externalizam conflitos no brincar).
    • Adultos em processos criativos (arteterapia, mandalas).

Crianças não conseguem nomear seus afetos e pelo brincar acessam suas feridas. Quando falamos de um adulto a situação é um pouco diferente. O brincar também tem um lugar de importância, por exemplo quando usamos recursos manuais como argila, massinha, mandalas terapêuticas ou até uma música para construir uma ponte com o inconsciente, facilitando o acesso a esses conteúdos que agora poderão ser assimilados e nomeados pela consciência.

O ponto de alerta é sobre ficar no brincar na vida adulta e permanecer em um estado de regressão, já que isso prejudica em larga escala o desenvolvimento do sujeito, ou seja, por mais que o cuidado com as bonecas hiper-realistas tenham um efeito aparentemente terapêutico, alimentar tal comportamento por tempo demasiado, pode gerar sérios comprometimentos para a saúde e integralidade do ego.

Ao invés de ser uma ponte de contato com os conteúdos que precisamos elaborar, acaba sendo um anteparo que nos afasta e nos coloca em uma realidade paralela – reforçada pelo algoritmo, curtidas e polêmicas – delírio em rede.


6. Vínculos Substitutivos: Por Que Isso Preocupa?

As Reborns são sintoma de uma cultura do afeto seguro e unilateral:

  • Relacionamentos sem risco: Bonecas não julgam, não abandonam, não exigem reciprocidade.
  • Analogia com IA: Assim como chatbots “emocionais”, as Reborns oferecem ilusão de conexão – mas não desenvolvem empatia ou maturidade afetiva.

Cada vez mais se relacionar com o outro se tornou uma inconveniência, por isso a busca por vínculos superficiais vem se tornando tão atrativa. Se relacionar é como um músculo que precisa estar em constante exercício. Com o isolamento social devido a Pandemia pelo Covid e o aumento exacerbado dos contatos virtuais, fomos atrofiando esse músculo. É o famoso sentimento de “baixa bateria social”.

Enquanto alguns tratam bonecas como bebês, crianças reais são cada vez mais tratadas como objetos — um paradoxo cruel.

  • Crianças reais atrapalham, surpreendem, choram, exigem. Não se moldam ao nosso desejo.
  • Bonecas nunca frustram: são relacionamentos plásticos, tão artificiais quanto anestésicos — entorpecem a dor, mas não curam.

O fato é que a vida real resiste, confronta e nunca se encaixa totalmente em nossas fantasias. Enquanto buscamos controle absoluto, perdemos a riqueza do inesperado, do outro que nos desafia e nos faz crescer. Isso é a vida.


Conclusão: Um Espelho Social

As bonecas Reborn não são “o problema”, mas um alerta:

  • Sobre saúde mental: Até que ponto são válvula de escape e quando viram patologia?
  • Sobre valores sociais: Por que ainda depositamos no “cuidado materno” a única fonte de identidade para muitas mulheres?
  • Sobre tecnologia: Estamos usando objetos e algoritmos para preencher vazios relacionais que deveriam estar sendo ocupados por vínculos reais?

Questionamento urgente: Se normalizamos substituir humanos por objetos, o que sobra da nossa capacidade de lidar com conflitos reais?

Para saber mais sobre o assunto, assista a entrevista exclusiva a rádio 102.9:

Gabriela Gomes do Nascimento
Psicóloga junguiana – CRP 06/165019

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *